Livro da Semana: Dino Davissauro

Na história, Davi é um menino que fica muito irritado toda hora. E quando fica bravo, ele vira um dinossauro. Mas o livro ensina que, se ele respirar fundo, fica mais calmo e deixa de ser um dinossauro.

Ou seja: tudo errado.

Quem não quer se transformar em um dinossauro? Qualquer pessoa razoável vai achar uma ótima ideia se libertar da débil forma humana e virar um sensacional dinossauro. É como se você pudesse ser o Barney, o Dinossauro – só que, em vez de sair cantando, você tem o poder de destruir tudo que vê pela frente.

Barney esmaga!

E mais que uma premissa equivocada, o livro tem uma proposta curiosa.

Dino Davissauro é um livro que ensina a criança a lidar com a raiva enquanto faz o pai passar raiva. Certamente, com a intenção de que nós, pais, possamos experimentar o próprio método proposto no livro.

Apesar das ilustrações bem feitas, cada outro detalhe no livro vai irritando um pouco: o texto mal escrito, as rimas aleatórias e uma música estranhíssima provavelmente composta pelo Djavan (“verde com verde dá azul” ou coisa assim). Você vai lendo em voz alta pra criança e ficando constrangido, numa espécie de O Livro Sem Figuras, só que feito na maldade.

E então, chega o grand finale: quando a mãe já resolveu tudo sozinha e está abraçando o filho com todo o carinho, só na última página aparece o pai, meio indiferente, lá no fundo da cena, chegando do trabalho com sua pasta de trabalho.

Primeiro, você acha que é um vendedor de enciclopédias. Até que você se toca que não existe mais vendedor de enciclopédia – e o que um vendedor de enciclopédia estaria fazendo num livro sobre que ensina a criança a lidar com a raiva? Talvez se ele estivesse no começo do livro, o menino poderia aprender a lidar com a raiva na própria enciclopédia, o que seria certamente melhor que obrigar o pai a ler o livro.

Mas enfim: está lá o pai, um figurante perfeitamente dispensável. E você, pai, que se deu ao trabalho de ler o livro apesar de tudo, fica bastante furioso. Com a desvantagem de nem ao menos virar um dinossauro.

(E se você ainda quiser um livro sobre raiva, é mais jogo ir no A Raiva, de Blandina Franco e José Carlos Lollo.)

Livro da Semana: Memórias do Subsolo

Depois de vários dias mergulhado n’O Livro Com o Ursinho na Capa é bom deixar o seu bebê encarar uma leitura mais leve e casual: sem toda aquela complexidade psicológica, sem o mergulho profundo no inconsciente.

Memórias do Subsolo poderia ser classificado na mesma categoria de “Os Amiguinhos da Floresta”, se “Os Amiguinhos da Floresta” contasse a história de um sapo amargo que despacha críticas ferozes a tudo e a todos, recluso em um subsolo.

Muitos dirão que um bebê não é capaz de compreender o texto de Memórias do Subsolo. Mas lembre-se: estamos falando dessa pessoinha que encontra sentido n’O Livro Com o Ursinho na Capa. Ele certamente pode ler a obra inteira de Dostoiévski no original, enquanto faz cocô.

Se lido com voz suave, Memórias do Subsolo, é uma ótima leitura para fazer o bebê adormecer e sonhar com os anjinhos. É tudo uma questão de entonação. Experimente ler para seu filho ou filha o trecho abaixo, por exemplo, bem baixinho:

“Um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada.”

Fiódor Dostoiévski, em “Memórias do Subsolo”

Claro que isso não é uma leitura para qualquer fase do bebê. É mais recomendável para aqueles que já passaram da exterogestação. Se o seu neném tem menos de 3 meses, é melhor aguardar que a Editora 34 traduza o livro que Dostoiévski escreveu mais tarde, no cárcere na Sibéria, “Memorinhas do Subsolo Maluco”. É como o texto original, só que com diminutivos e ilustrações bem coloridas.

“Sou um homem doentinho… um homem malvadinho… um hominho desagradável. Creio que estou dodói do fígado.”

Fiódor Doistoiévski, em “Memorinhas do Subsolo Maluco”

Depois desta leitura suave, seu bebê estará pronto para encarar novamente livros mais densos, como “Puxe e Ache – Fazendinha”.

Livro da Semana: Leãozinho

Diferente do último Livro da Semana, este aqui tem um título, o que já ajuda um pouco. Um título direto e rápido, de uma só palavra que parece dizer do que se trata o livro: Leãozinho. Sem artigo, só “Leãozinho”.

Mas o livro é um grande jogo com o leitor. E o jogo começa pelo título. Parece que vamos conhecer a história deste leãozinho da capa, mas na verdade o livro trata sobre habitação e moradia.

!!!ALERTA DE SPOILER!!!

E, se o Livro com o Ursinho na Capa faz experimentos com o texto, “Leãozinho” se mostra experimental no formato propriamente dito. Ele não tem páginas que podem ser viradas, mas é uma grande tira com frente e verso, dobrada em sanfona, como um folhetão imobiliário:

Analisando o texto, descobrimos que, no final das contas, é sim de um folhetão imobiliário. O livro já abre com uma clássica frase de lançamento de condomínio:

“Lar é onde queremos estar.”

Anônonimo, in “Leãozinho”

Em seguida, desvia um pouco o assunto, falando sobre diferentes personagens (ou perfis de consumidores?), adjetivando cada um deles, às vezes de maneira aleatória. Todos concordamentos que o leão é forte e valente, que o rinoceronte é robusto e que o macaco é alegre enquanto saltita. Mas por que a zebra é curiosa? Por que o elefante está inquieto?

Não poderíamos falar sobre a vaidade da zebra, com sua roupa listrada? Ou a respeito da infalível memória do elefante? Ou será que isso já se parte de pressuposto e eles são os únicos personagens tridimensionais do livro, com personalidades que vão além do óbvio?

Ansioso, você olha o verso do livro, na esperança de encontrar essas respostas. Mas não. O que vemos é apenas uma sequência de clichês de propaganda imobiliária:

Seja na floresta, no bosque ou na savana, sua casa é sempre o melhor lugar!

Anônimo, in “Leãozinho”

E mesmo como folheto de lançamento imobiliário, o livro ainda deixa muito a desejar: qual é a metragem? São quantos quartos? Qual a distância pro aeroporto? Tem portaria do futuro, espaço fitness ou jardim zen no condomínio? Trata-se de uma obra inacabada, como “Sanditon” de Jane Austen, “Verdade ao Amanhecer” de Hemingway e a adaptação para TV de “Brida” exibida na Rede Manchete.

O livro também não se mostra preciso enquanto estudo de zoologia. Ao apertar o elefante, por exemplo, ele faz o som de um apitinho agudo, como de um patinho de borracha, em vez do esperado bramido ou da chamada de contato que tantas vezes já ouvimos nos documentários de Sir David Attenborough.

Por sinal, é o mesmo som que o filhote de rinoceronte faz, quando apertado. Aquele filhote de rinoceronte ali, pendurando por uma espécie de cordão umbilical – talvez simbolizando a eterna conexão entre o filho e mãe? Talvez.

Mas eu não apostaria em nenhum pensamento tão denso vindo de um folheto imobiliário.

Ainda sobre o Livro com o Ursinho na Capa

O nosso livro da semana continua surpreendendo. Não me canso de encontrar significados e pensamentos no sutil texto. Como quem olha o céu noturno em busca daquelas estrelas mais distantes e de misteriosas nebulosas, é preciso aguçar o olhar antes de encher a banheirinha, tomar o livro em mãos e se aventurar em mais uma leitura.

Hoje, foi este trecho que me chamou a atenção:

“Saltar entre árvores é mesmo com o esquilo”

Anônimo

Aqui, o autor ou autora nos joga na cara uma grande verdade, uma barreira intransponível, nos tira da posição de seres dominantes, feitos à imagem e semelhança de Deus. Sim, nós temos limitações.

Já deciframos o DNA. Já enviamos uma sonda para além do sistema solar. Já temos a primeira imagem do horizonte de eventos de um buraco negro. Mas nem pense em saltar entre árvores. Isso é com o esquilo.

Calma. Você ainda tem opção. Se o seu interesse for mesmo saltar, posso sugerir o salto com vara, o salto triplo, ornamental ou mesmo a amarelinha. Mas caso salto entre árvores entre nas olimpíadas ou nas gincanas de colégio, pode ter certeza: o ouro vai para um esquilo.

Encontraremos outro Livro da Semana tão profundo e denso? Jamais.

Discussão literária: sobre o Livro com o Ursinho na Capa

Grandes livros merecem ser relidos de tempos em tempos. Ano sim, ano não, releio A Metamorfose, de Kafa, e reparo em um ou outro detalhe que não havia notado antes.

Não é diferente com o Livro do Ursinho na Capa, do qual falei neste outro texto. Uma obra tão complexa é digna de ser apreciada várias vezes, em todas as suas nuances. E não a cada ano par, mas todas as manhãs, toda vez que você dá banho no bebê.

Você pode ler e reler 365 vezes no ano (366, se for um ano bissexto) e nunca vai conseguir absorver completamente a história.

Digo isso porque na minha resenha do livro, mencionei uma construção que, na minha cabeça, subvertia as regras de pontuação:

Acontece que quando se diz, a respeito do lindo cisne, “muito bem ele sabe nadar”, a mim soava como um elogio, congratulações ao lindo cisne: “Muito bem! Ele sabe nadar!”. E fazia sentido. Afinal, não deixar de ser um feito relevante um bicho que voa aprender também a nadar. A maioria das pessoas que eu conheço consegue fazer, no máximo, uma dessas duas coisas.

Eu havia imaginado, então, que a falta da pontuação adequada entre “muito bem” e “ele sabe nadar” seria mais uma ousadia, um experimentalismo do autor ou da autora.

No entanto, agora entendo esta passagem de maneira diferente. A construção também pode ser interpretada como “ele sabe nadar muito bem”, apenas invertendo a ordem das palavras para a rima funcionar – recurso, como já dito aqui, muito usado por nomes como Osório Duque-Estrada, Augusto dos Anjos e Latino.

Talvez as duas maneiras de ler estejam corretas. Ou talvez ainda exista uma terceira interpretação para o texto, que muda completamente o sentido da história.

Nunca saberemos, já que o autor ou autora não se identifica e, portanto, não podemos encontrar seu e-mail do BOL.

Enfim, deixo aqui uma citação:

“Algo é uma obra de arte por ser o correlato de uma interpretação, inscrita em uma rede de significações históricas, teóricas e sociais, que lhe atribui o estatuto de obra de arte.”

Arthur Danto, filósofo e crítico de arte

E o Livro com o Ursinho na Capa, sem dúvida, é uma obra de arte.

Livro da semana: sem título

O livro da semana segue a tradição de importantes obras como o álbum branco dos Beatles e os quadros do Jackson Pollock: ele não tem título.

Nos círculos literários e acadêmicos, ele é mais conhecido como “O Livro de Banheiro com o Ursinho na Capa”.

“O Livro de Banheira com o Ursinho na Capa”, autoria desconhecida

O autor ou autora escolheu também não colocar seu nome no livro. E há muita polêmica em torno de sua real identidade. Muitos acreditam ser o lendário livro não-assinado de José Saramago. Outros acham que foi um jeito que foi um jeito que Tolstói encontrou de burlar seu contrato com sua editora na época.

A teoria mais aceita, no entanto, é que seja um livro de Fernando Pessoa – e que ele só não conseguiu pensar em nenhum heterônimo pra assinar a obra.

Mas vamos ao livro propriamente dito.

!!!ALERTA DE SPOILER!!!

Se você não quer estragar a total apreciação da leitura, talvez valha a pena parar de ler esta resenha agora. Como a minha proposta é fazer uma análise profunda da obra, eu vou ter que revelar as grandes reviravoltas que o texto apresenta.

O livro ousa, mesclando poesia e prosa, para fazer um retrato pungente da pisquê de um ursinho que adora ir no rio brincar – e de como ele encara o vazio que sentimos diante da imensidão do cosmos.

Já de cara, descobrimos que o ursinho adora brincar no rio. Como Osório Duque-Estrada, o autor ou autora também inverte a ordem das palavras pra facilitar a rima. O texto já se mostra experimental quando, na frase seguinte, subverte as regras de pontuação, emendando a frase “muito bem ele sabe nadar”. É uma obra de leitura complexa, que não presta reverência às normas estabelecidas, esticando as possibilidades e buscando um novo linguajar. Como um James Joyce twitteiro.

Rapidamente, deixamos de acompanhar a vida do ursinho (seus pensamentos, seus anseios), numa demonstração da transitoriedade de tudo – e nos lembrando que nunca seremos protagonistas da Grande Peça do Cosmos. Nosso pensamento viaja além, mostrando a insignificância do eu na pessoa do ursinho, quando descobrimos outros animais.

Começamos pelo peixinho que gosta muito de saltar, insatisfeito com a sua condição subaquática, uma cruel limitação imposta pela natureza, contra a qual podemos lutar, mas jamais vencer.

Enquanto isso, a rã apenas observa, acompanhando o espetáculo. É um clássico personagem shakesperiano, cuja função dramática é dar uma visão de fora da história, com uma sabedoria que o ursinho, o cisne ou o peixinho jamais conseguiriam alcançar.

Chegamos agora ao momento-chave do livro. Poderiam ser observações pueris: o esquilo salta (exatamente como o peixe, embora com motivações diferentes) e a raposa quer brincar. Mas o capítulo ganha fortes pretensões literárias quando o autor ou autora abre mão das rimas. Aqui, o texto deixa claro: não há poesia que resista ao tempo. Ou talvez tenham esgotado as rimas terminadas em “ar” no dicionário do autor ou autora.

O grande mérito do livro é que trata-se de uma obra que incomoda, tira a gente da apatia, do lugar de repouso. O texto fecha de maneira enigmática, deixando várias questões em aberto: conseguirá o ursinho brincar no rio? Irá o peixinho morrer sem poder respirar fora d’água, tal qual um Ícaro escamado? E a raposa? Ela vai fazer amigos ou seguirá vagando solitária, mesmo em meio a uma multidão de esquilos, sapos e cisnes?

Tudo que o livro diz, no final, para essas questões é:

Flap! Flap!

Mais do que uma distração para o bebê na banheira, a obra é uma ótima introdução ao niilismo.